O Highway Capacity Manual (HCM) é um manual técnico produzido por cientistas de transportes dos EUA a serviço do Transportation Research Board (algo como “painel de pesquisas em transportes”). Produzido desde 1965, o HCM traz uma série de métodos quantitativos e semiquantitativos para modelagem do desempenho operacional de ruas e estradas. No decurso de seus mais de 50 anos de existência, o HCM trouxe uma série de conceitos influentes para a literatura de engenharia de tráfego dos EUA e de todo o mundo; um deles é o chamado level of service, ou nível de serviço, cuja teoria subjacente discutiremos em detalhe no post de hoje.
Tenha em mente que a maior parte do material a seguir foi baseada na quinta edição do HCM, publicada em 2010; uma sexta versão do manual, publicada em 2016, já está disponível e traz alterações que podem suplantar o conteúdo da edição anterior. Outra observação importante: como o HCM 2010 foi desenvolvido para aplicação no setor rodoviário dos EUA, todas as medidas têm como base o sistema USCS; velocidades aparecem em milhas por hora e medidas curtas, em pés. Todavia, a maior parte dos resultados pode ser convertida para o Sistema Internacional com facilidade, e eu mesmo forneço algumas conversões no decorrer do texto.
1. O conceito de Level of Service
O LOS é uma classificação sintética do desempenho operacional de uma rodovia, mensurado, sobretudo, pela capacidade desta de manter um tráfego veicular de alta qualidade para os usuários. O LOS pode pertencer a seis categorias, cada uma definida por uma letra distinta, de A até F. Em um extremo, um LOS de nível A representa a melhor qualidade de serviço, ao passo que, em outro extremo, um LOS de nível F refere-se à pior qualidade de serviço. A Figura 1 ilustra perfis de tráfego típicos de cada LOS.
Figura 1. Perfis de tráfego típicos de cada nível de serviço.
O LOS possui méritos teóricos importantes. Por exemplo, a degradação do LOS em vias progressivamente mais congestionadas é facilmente percebida pelos condutores. Ademais, o LOS pode ser estabelecido com uma coleção de dados de fácil acesso. O uso do LOS pode até transcender a mera modelagem técnica, uma vez que este conceito pode indicar se certas escolhas de gestão ou políticas públicas trouxeram bons resultados para o desempenho de uma instalação rodoviária (ITE, 2016).
2. Procedimento de determinação do LOS
O HCM 2010 traz métodos distintos para determinação do LOS de segmentos básicos de autoestradas (freeways), rodovias de pista dupla (multilane highways) e rodovias de duas faixas (two-lane highways). Restringimo-nos aqui à determinação do nível de serviço de autoestradas; a metodologia dos outros dois casos é semelhante.
Para estabelecer o LOS de um segmento básico de autoestrada, podemos seguir os seguintes passos, que seguem, com algumas modificações, as abordagens do HCM 2010 e de Garber e Hoel (2020):
- Calcular a velocidade de fluxo livre (Seção 3).
- Calcular a taxa de fluxo de análise (Seção 4).
- Calcular a velocidade média de operação (Seção 5).
- Calcular a densidade (Seção 6)
Boa parte dos dispositivos contidos no HCM 2010 tem como base a existência das chamadas “condições de base” no segmento rodoviário considerado. Estas podem ser definidas pelas seguintes características:
- As condições climáticas e a visibilidade dos condutores são boas e não afetam o desenvolvimento regular do tráfego. Não há obstruções que possam estorvar a passagem de veículos, como acidentes ou obras viárias.
- A frota que compõe o tráfego é constituída apenas por veículos de passageiro e não inclui veículos pesados como caminhões, ônibus e veículos recreacionais (trailers, por exemplo).
- As faixas de tráfego possuem ao menos 3.5 m de largura, e a pista é dotada de uma passagem lateral livre (acostamento) de ao menos 1.8 m de largura no lado direito desta ou, preferivelmente, em ambos os lados.
- Todos os motoristas da frota são usuários regulares da via e conhecem-na com precisão.
- Não há pontos de acesso no segmento de rodovia, ou seja, a densidade de pontos de acesso por quilômetro é zero.
- Um estado de fluxo insaturado deve prevalecer na via, de modo que o desenvolvimento regular do tráfego não seja afetado por possíveis gargalos a montante ou a jusante.
Evidentemente, poucas rodovias satisfazem a todas estas restrições a um só tempo, logo a modelagem deve possuir mecanismos que possibilitem a obtenção de capacidades e níveis de serviço mesmo diante de condições não-ideais. De fato, como veremos a seguir, o HCM fornece ferramentas e correções para lidar com a maior parte das restrições listadas acima.
Prosseguimos à definição de velocidade de fluxo livre. VFL é a velocidade média de veículos em um dado segmento, medida em condições de baixo volume, quando os condutores podem trafegar com a velocidade desejada e não estão constringidos pela presença de outros veículos ou dispositivos de controle de tráfego (semáforos, por exemplo). A VFL pode ser mensurada no campo ou estimada matematicamente. No primeiro caso, estabeleceu-se que a VFL é a velocidade média de veículos de passageiro observados em atividade durante um período de tráfego baixo ou moderado não superior a 1000 veh/hora/faixa. Métodos para realizar estudos de velocidade podem ser facilmente encontrados na literatura; um exemplo é o capítulo 4 de Garber e Hoel (2020). Na ausência de métodos de campo, o HCM sugere que a velocidade de fluxo livre seja calculada por meio da seguinte fórmula:
onde VFL é dada em milhas por hora, fLF é o fator de ajuste para largura de faixas de tráfego, fAL é o fator de ajuste para abertura lateral e DPA é a densidade total de pontos de acesso, isto é, o número aproximado de PAs por milha de segmento. O valor 75.4 mi/h, equivalente a cerca de 121 km/h, representa a velocidade de fluxo livre “base” para vias urbanas e rurais sem penalidades de qualquer tipo. O fator de ajuste fLF traduz-se em uma redução (observe o sinal negativo) sobre a VFL devido ao fato de que uma via de menor largura – ou seja, uma via mais estreita – deve acomodar um fluxo de menor velocidade do que uma pista ampla. Os valores de fLF podem ser extraídos da Tabela 1; o padrão de referência é uma faixa de tráfego com largura de 12 pés (3.66 m).
Tabela 1. Fator de ajuste fLF para largura de faixas de tráfego.
O fator de ajuste fAL, por sua vez, leva em conta o fato de que uma via com abertura lateral (acostamento) estreita deve, por motivos de segurança e conforto psicológico para os usuários, acomodar um fluxo de menor velocidade. Os valores de fAL podem ser extraídos da Tabela 2; note que o valor de fAL depende do número de faixas de tráfego em uma direção e da largura do acostamento naquela direção; a penalidade é nula para uma pista com ao menos duas faixas de tráfego e abertura lateral maior ou igual a 6 pés (1.8 m).
Tabela 2. Fator de ajuste fAl para abertura lateral.
Finalmente, há a densidade de pontos de acesso, DPA, que contabiliza o impacto negativo que pontos de acesso têm sobre o desenvolvimento regular do tráfego. O cálculo de DPA não envolve o uso de tabelas; em seu lugar, tomamos o número de pontos de acesso contidos em uma distância de três milhas a montante e três milhas a jusante do ponto médio do segmento sob consideração, e em seguida dividimos tal número por 6 milhas.
4. Calculando a taxa de fluxo de análise
Como sugere o nome, a chamada taxa de fluxo de análise é uma medida da “vazão”, por assim dizer, de veículos que percorrem uma faixa de tráfego ao longo de uma hora. O fluxo de análise (veículos de passageiro/hora/faixa) é dado pela seguinte equação:
onde V é o volume horário em veh/h, PHF é o fator de hora pico, N é o número de faixas, e fVP é o fator de ajuste para veículos pesados. O fator de hora pico e o fator de ajuste para veículos pesados são brevemente discutidos a seguir.
Fator de hora pico: É esperado que a taxa de fluxo em um segmento não seja constante no decurso do período de análise. Para levar em conta a ausência de uniformidade no volume de tráfego, o HCM estabeleceu, para propósitos de análise, o uso do período de 15 minutos com maior taxa de chegada de veículos. O chamado peak-hour factor, ou fator de hora pico, é dado pela razão entre o volume horário V e quatro vezes o volume V15 exibido nos 15 minutos de tráfego mais intenso do período de análise:
O fator 4 presente no denominador é simplesmente uma maneira de estender o volume exibido nos 15 minutos de movimentação mais intensa a um período de 4 15 = 60 minutos – ou seja, uma hora. Quanto mais distante de 1 for o valor do PHF, mais não-uniforme será o tráfego no segmento sob consideração.
Fator de ajuste para veículos pesados: Caminhões, ônibus e veículos recreacionais apresentam características relativas a performance – baixa aceleração, frenagem inferior – e dimensões – comprimento, largura – que impactam negativamente o desenvolvimento de tráfego regular em um segmento rodoviário. Por conseguinte, introduziu-se o fator de ajuste fVP para modelar o efeito que tais veículos produzem sobre a taxa de fluxo. Em seu método de modelagem, o HCM estabelece que a proporção de caminhões e ônibus, PC, e a proporção de veículos recreacionais, PR, sejam determinadas por observação. (Por conveniência, caminhões e ônibus foram agrupados em uma única categoria.) Ademais, é necessário obter os equivalentes veiculares de caminhões/ônibus, EC, e veículos recreacionais, ER. Como sugere o nome, tais parâmetros indicam o número de veículos de passageiro que utilizariam o mesmo espaço ou capacidade em uma rodovia do que um único caminhão/ônibus ou veículo recreacional (Garber e Hoel, 2020). Naturalmente, os valores de EC e ER são funções do greide da autoestrada, pois segmentos inclinados tendem a prejudicar o desempenho de veículos pesados de modo particularmente pronunciado. Com o intento de obter os equivalentes veiculares de segmentos estendidos, o terreno pode ser dividido em três categorias:
- Terreno plano. Qualquer combinação de alinhamento horizontal e vertical que permita que veículos pesados mantenham aproximadamente a mesma velocidade do que os veículos de passageiro. Isso geralmente implica a presença de greides pequenos, não superiores a 2%.
- Terreno ondulado. Qualquer combinação de alinhamento horizontal e vertical que obrigue veículos pesados a reduzir sua velocidade substancialmente abaixo do valor mantido por veículos de passageiro, sem, no entanto, que os veículos pesados operem abaixo de sua velocidade limitante por um período substancial.
- Terreno montanhoso. Qualquer combinação de alinhamento horizontal e vertical que faça com que veículos pesados operem sob velocidade limitante por distâncias consideráveis ou períodos elevados de tempo.
Para uma definição e discussão de velocidade limitante, consulte Mannering e Washburn (2013). Equipados com o tipo de terreno que caracteriza o segmento rodoviário em questão, podemos obter os equivalentes veiculares por meio da Tabela 3. É importante observar que os valores da referida tabela são inerentes a uma análise de segmentos estendidos; estes aparecem definidos no HCM 2010 como segmentos nos quais nenhum trecho de greide inferior a 3% tenha comprimento superior a 0.5 milhas (805 m), e, ademais, nenhum trecho de greide superior a 3% tenha comprimento superior a 0.25 milhas (402 m). Segmentos que não satisfaçam tais restrições tornam necessário o uso de uma análise detalhada para a obtenção de ET e ER, conforme explica o HCM 2010.
Munidos dos valores pertinentes, podemos determinar o fator de ajuste para veículos pesados por meio da seguinte equação:
onde, como sabemos, PT e PR são as proporções de caminhões/ônibus e veículos recreacionais na frota de tráfego, respectivamente, e ET e ER são os equivalentes veiculares de caminhões/ônibus e veículos recreacionais, respectivamente.
Tabela 3. Equivalentes veiculares fVP para veículos pesados.
5. Calculando a velocidade média de operação S
A velocidade média de operação S do tráfego é utilizada no cálculo da densidade do segmento rodoviário. Já que acabamos de discutir a velocidade de fluxo livre, o leitor pode questionar a suposta necessidade do cálculo de um segundo tipo de velocidade. A relação entre os dois parâmetros é simples, porquanto a velocidade de fluxo livre, VFL, é igual à velocidade média de operação, S, para taxas de fluxo de análise inferiores a um valor limite conhecido como ponto de quebra, ou breakpoint. Em outras palavras, VFL é igual a S se o fluxo vp for baixo ou médio. Se o fluxo vp for superior ao ponto de quebra, a velocidade média de operação S torna-se uma função parabólica decrescente de vp. Matematicamente:
onde vp é a taxa de fluxo de análise e SBP-XX é a velocidade média de operação para uma VFL de XX mi/h quando vp for superior ao ponto de quebra. Os intervalos de vp para operação abaixo do ponto de quebra estão listados na Tabela 4. Uma representação gráfica das equações acima é exibida na Figura 2. A variável speed, no eixo vertical, é a velocidade média de operação; a variável flow rate, no eixo horizontal, é a taxa de fluxo de análise. As curvas de traçado grosso são representações do grupo de equações (5); cada curva representa uma velocidade de fluxo livre. Observe que, até certo valor de taxa de fluxo, as curvas são horizontais, indicando que a velocidade média de operação é idêntica à velocidade de fluxo livre (equação (5.1)); após o ponto de quebra, entram em cena as relações velocidade-fluxo parabólicas descritas pelas equações (5.2) a (5.6).
Tabela 4. Intervalos de taxa de fluxo abaixo do ponto de quebra.
Figura 2. Curvas velocidade-fluxo para segmentos básicos de autoestrada.
6. Calculando a densidade D e obtendo o nível de serviço
Munido das variáveis pertinentes, o engenheiro pode prosseguir com a determinação do LOS. A variável crucial é a densidade veicular D, a qual é definida pela razão
onde vp é a taxa de fluxo de análise obtida através da equação (2) e S é a velocidade média de operação obtida por meio do grupo de equações (5) ou de uma das curvas da Figura 2. Uma vez que a densidade D foi calculada, o nível de serviço pode ser estabelecido a partir dos intervalos listados na Tabela 5. Outra maneira de obter o LOS é recorrer à Figura 2: podemos mapear a taxa de fluxo (horizontal) e a velocidade média (vertical) e localizar um ponto; as linhas tracejadas partindo da origem indicam diferentes “zonas” de nível de serviço, e a localização do ponto com relação a tais zonas define o LOS da instalação rodoviária em foco.
Tabela 5. Intervalos de densidade veicular para diferentes níveis de serviço.
Exemplo
Uma autoestrada dotada de seis faixas de tráfego (três em cada direção) situa-se em terreno montanhoso e possui faixas de 10 pés de largura com abertura lateral de 3 pés à direita do trecho de percurso. Há ainda dez pontos de acesso ao longo do trecho de três milhas a montante e três milhas a jusante do ponto médio do segmento de análise. Em um dia útil comum, observa-se na rodovia um tráfego direcional típico de 2500 veículos ao longo da hora pico, dos quais 700 veículos chegam nos 15 minutos de maior congestão. Se a frota do tráfego em questão apresenta 12% de caminhões e ônibus e nenhum veículo recreacional, determine o nível de serviço.
Solução. Se as faixas de tráfego têm 10 pés de largura, podemos obter uma penalidade fLF = 6.6 mi/h na Tabela 1. Se as faixas de tráfego têm abertura lateral de 3 ft e existem três faixas em uma dada direção, podemos obter uma penalidade fAL = 1.2 mi/h na Tabela 2. A densidade de pontos de acesso é 10/6 = 1.67 pontos de acesso/milha. Recorrendo à equação (1), o valor da velocidade de fluxo livre é
O HCM recomenda que arredondemos a VFL para o múltiplo de 5 mais próximo; sendo assim, a VFL é 60 mi/h ou cerca de 97 km/h. Para computar a taxa de fluxo, utilizamos a fórmula (2):
O volume horário V = 2500 veh/h foi dado no enunciado do problema. Sabendo que 700 veículos percorrem a rodovia nos 15 minutos de maior congestão, calculamos o fator de hora pico PHF = 2500/(700 4) = 0.893. O número de faixas em uma das direções é N = 3. Para calcular o fator de ajuste para veículos pesados, note que, de acordo com o enunciado do problema, caminhões e ônibus representam 12% da frota; logo, PC = 0.12. A frota não possui veículos recreacionais, logo PR = 0. Ademais, sabemos que o terreno em questão é montanhoso; recorrendo à Tabela 3, temos EC = 4.5 e ER = 4.0. Substituindo as variáveis pertinentes na equação (4), temos:
Em seguida, obtemos a taxa de fluxo vp:
Inserindo na Figura 2 esta taxa de fluxo e a velocidade de fluxo livre VFL = 60 mi/h obtida acima, extraímos uma velocidade S igual a 60 mi/h. A velocidade média S é igual à VFL porque a taxa de fluxo é baixa o suficiente para que estejamos na porção horizontal da curva de velocidade versus fluxo; em outras palavras, estamos abaixo do ponto de quebra, logo S = VFL. Com os valores de vp e S, podemos calcular a densidade D (equação (6)):
De acordo com a Tabela 5, uma densidade veicular situada entre 18 e 26 vp/mi/faixa corresponde a um nível de serviço C. Concluímos, pois, que o LOS do segmento rodoviário estudado é de categoria C.
Referências
- GARBER, N.J. e HOEL, L.A. (2020). Traffic and Highway Engineering. 5ª edição. Boston: Cengage Learning.
- INSTITUTE OF TRANSPORTATION ENGINEERS. (2016). Traffic Engineering Handbook. 7ª edição. Hoboken: John Wiley and Sons.
- MANNERING, F.L. e WASHBURN, S.S. (2013). Principles of Highway Engineering and Traffic Analysis. 5ª edição. Hoboken: John Wiley and Sons.
- TRANSPORTATION RESEARCH BOARD. (2010). Highway Capacity Manual 2010. Washington: Transportation Research Board.