1. Classificação qualitativa de escoamentos gradualmente variados
Um escoamento gradualmente variado é um escoamento estacionário, não-uniforme no qual a variação de profundidade na direção do movimento é suficientemente gradual para que a distribuição transversal de pressão em uma dada seção possa ser considerada hidrostática (Sturm, 2010; Akan, 2006). Isso permite que o escoamento seja modelado como um sistema unidimensional no qual a gravidade terrestre é a única fonte de gradientes transversais de pressão.
Além da hipótese simplificadora atinente a gradientes de pressão, devemos supor que o escoamento ocorre em um canal prismático. Finalmente, pressupõe-se que a declividade da linha de energia pode ser localmente modelada com ferramentas de escoamento uniforme, tais como a equação de Manning.
Em estudos de EGV, as declividades de condutos livres são classificadas como mild (fraca, suave), steep (forte, íngreme), critical (crítica), horizontal (horizontal) e adverse (adversa). Se para uma dada vazão a profundidade normal de um canal é maior que a profundidade crítica, o escoamento é classificado como mild. Se a profundidade normal é menor que a profundidade crítica, diz-se que o canal é steep. Se a profundidade normal é igual à profundidade crítica, o canal é considerado crítico. Se a declividade do fundo do canal for igual a zero, o canal é (obviamente) classificado como horizontal. Finalmente, se a declividade do canal aumenta no sentido do escoamento (ao invés de diminuir, como se espera de um escoamento típico), o canal é classificado como adverso. As cinco definições estão listadas na Tabela 1.
Tabela 1. Classificação de declividades em escoamentos gradualmente variados. (yn = Profundidade normal; yc = profundidade crítica; S0 = declividade do fundo do canal).
Na análise qualitativa de escoamentos gradualmente variados, é usual definir um perfil de linha d’água com uma letra seguida de um número (por exemplo, M1, S2, A2, etc.). A letra refere-se ao tipo de EGV, de acordo com as iniciais listadas na Tabela 1. O número, por sua vez, concerne à posição relativa do perfil com relação ao nível de profundidade crítica (NPC) e ao nível de profundidade normal (NPN). Para as declividades mild e steep, o NPC e o NPN dividem a região sobrejacente ao fundo do canal em três ‘zonas’, como ilustra a Figura 1. A região acima de ambos os níveis é chamada zona 1; a região entre os dois níveis é chamada zona 2; a região entre o fundo do canal e o nível inferior é chamada zona 3. Se a declividade do canal for mild, o nível superior é o NPN e o nível inferior é o NPC; o inverso ocorre se a declividade do canal for steep, com o NPC por cima e o NPN por baixo. Finalente, observamos que existem apenas duas ‘zonas’ para canais adversos, horizontais e críticos uma vez que a profundidade normal destes não existe, é infinita, ou é igual à profundidade crítica, respectivamente.
Os perfis qualitativos dos 5 tipos de declividade estão ilustrados na Figura 2.
Figura 1. As três ‘zonas’ de EGVs em declividades mild e steep.
Figura 2. Perfis qualitativos de EGVs.
2. A equação diferencial do EGV
Passamos agora a um breve tratamento quantitativo do EGV. Conforme discutido em um post anterior, a energia específica de um escoamento de superfície livre é dada por
onde y é a profundidade de escoamento, V é a velocidade e g 9.81 m/s2. Seja x a direção do escoamento; podemos diferenciar (1) em relação a x e escrever
onde Q é a vazão e A é a área de seção transversal. Utilizando B = largura superior = dA/dy, D = diâmetro hidráulico = A/B e Fr = número de Froude = V/(gD)1/2, podemos seguir manipulando (2) e obter
Mas a derivada da energia específica em relação à direção do escoamento é
onde S0 é a declividade do fundo do canal e Sf é a declividade da linha de energia. Substituindo em (3), vem
Essa é a equação básica de escoamentos gradualmente variados. Recorrendo à definição de número de Froude, podemos reescrever (5) como
Matematicamente, (5) é uma equação diferencial ordinária de primeira ordem na qual x é a variável independente e y é a variável dependente. A equação descreve a taxa de variação da profundidade de escoamento y em função da distância x. Inspecionando o lado direito de (6), vemos que essa taxa é uma função das propriedades da seção do canal, da profundidade de escoamento e da vazão. Para uma dada seção, propriedades geométricas como área e largura superior são funções de y apenas. A declividade de fundo S0, o n de Manning e a vazão de escoamento são conhecidos a priori. Consequentemente, o lado direito de (5) passa a ser uma função da profundidade de escoamento y, que por sua vez depende da distância x. Designando essa função como f(x,y), podemos reescrever (5) como
onde
A equação (7) pode ser integrada para fornecer a profundidade de escoamento ao longo do traçado de um canal. Como f(x,y) é uma função não-linear, praticamente não existem soluções analíticas para (7); portanto, faz-se necessário o uso de métodos numéricos.
3. O método passo direto
No método mais simples de resolver a equação (5), tomamos uma dada profundidade y e computamos a distância x no qual essa profundidade ocorrerá. Esse é o princípio do método passo direto, o qual será discutido no restante desse post. Outra possibilidade seria proceder de maneira inversa e determinar a profundidade y em uma dada distância x; essa é a abordagem do método passo ‘padrão’, que é mais avançado e não será estudado aqui. Leitores interessados podem encontrar excelentes discussões de ambos os métodos em Akan (2006), Sturm (2010) e Chaudhry (2022).
O primeiro passo é escrever a equação de Bernoulli entre duas seções 1 e 2 do escoamento de canal,
onde z é a elevação do fundo do canal em relação ao nível de referência (datum), y é a profundidade de escoamento, V é a velocidade, é o fator de correção para energia cinética e hf é a perda de carga entre as seções 1 e 2. A elevação z pode ser escrita em função da distância x na direção do escoamento:
Lembre-se que S0 é a declividade do fundo do canal.
Em seguida, escrevemos a energia específica para as seções 1 e 2:
Ademais, podemos exprimir a perda de carga hf em termos da declividade média da linha de energia e da distância x,
Substituindo (12) e (13) em (9),
Inserindo a expressão (10) e cancelando z1,
Resolvendo para x2, obtemos
Essa equação permite-nos localizar a seção 2. A localização assim obtida serve como valor inicial para o passo seguinte. Destarte, podemos estabelecer o perfil de linha d’água aumentando ou reduzindo as profundidades y e determinando onde (isto é, em qual valor de x) tais profundidades ocorrerão.
Exemplo
Um canal trapezoidal possui largura inferior igual a 12 m e inclinação lateral 2:1 (m = 2). O n de Manning da superfície do canal é 0.031 e a inclinação longitudinal é 0.001. Sabendo que o canal termina em uma queda d’água, computar o perfil da linha d’água para uma vazão de 50 m3/s.
O primeiro passo é computar as profundidades normal e crítica para o canal em questão. Para calcular yn, substituimos os valores pertinentes na equação de Manning:
A equação não-linear acima pode ser resolvida com os comandos Solve ou FindRoot do Mathematica (outra opção é usar a calculadora virtual disponível em http://ponce.sdsu.edu/onlinechannel01.php):
A única solução real é yn = 2.166 m. Em seguida, podemos determinar a profundidade crítica igualando o número de Froude a 1 e resolvendo para yc:
Isto é, yc = 1.132 m. Uma vez que yn > yc, temos um declive mild e o perfil que buscamos plotar é um perfil M2 cuja condição de contorno é a profundidade crítica na queda d’água. Os cálculos estão tabelados no arquivo .xlsx salvo em nossa pasta de Google Drive. A tabela a seguir sumariza os cálculos para os primeiros 10 valores de y selecionados por mim.
As 12 colunas são brevemente descritas a seguir.
Coluna 1, y. Essa coluna contém as profundidades de escoamento. Começamos com um valor próximo da profundidade crítica yc 1.132 m e prosseguimos com pequenos incrementos nas linhas subsequentes. Adotamos incrementos menores quando a profundidade se aproxima do valor normal yn 2.166 m.
Coluna 2, A. Essa coluna contém a área de seção transversal correspondente à profundidade da coluna 1.
Coluna 3, P. Essa coluna contém o perímetro de seção correspondente à profundidade da coluna 1.
Coluna 4, R. Essa coluna contém o raio hidráulico R, que é dado pela razão entre área (coluna 2) e perímetro (coluna 3).
Coluna 5, V. Essa coluna contém a velocidade de escoamento, que é dada pela razão entre a vazão Q e a área de seção transversal (coluna 2).
Coluna 6, Sf. Essa coluna contém a declividade da linha de energia, que pode ser obtida a partir da equação de Manning:
Coluna 7, Sf,med. Essa coluna contém a declividade média da linha de energia. Esta pode ser obtida calculando a média aritmética da declividade Sf do passo presente e Sf do passo anterior:
Podemos também utilizar a média geométrica ou a média harmônica, conforme mencionado em Chaudhry (2022).
Coluna 8, S0 – Sf,med. Essa coluna contém a diferença entre a declividade do fundo do canal S0 e a declividade média da linha de energia computada na coluna 7.
Coluna 9, E. Essa coluna contém a energia específica do escoamento, qual seja:
onde y é a profundidade listada na coluna 1 e V é a velocidade calculada na coluna 5. Note que = 1.
Coluna 10, ∆E. Essa coluna contém a variação de energia específica entre o passo presente e o passo anterior.
Coluna 11, ∆x. Essa coluna contém o incremento de distância horizontal entre o passo presente e o passo anterior. Este pode ser calculado pela razão (vide equação (16))
Note que ∆E é calculado na coluna 10 e S0 – Sf,med é calculado na coluna 8.
Coluna 12, x2. Essa coluna contém a distância onde a profundidade y listada na coluna 1 ocorrerá. Tal distância é obtida somando a distância x do passo anterior e o incremento de distância horizontal calculado na coluna 11.
O perfil obtido é mostrado a seguir.
Referências
- AKAN, A.O. (2006). Open Channel Hydraulics. Oxford: Butterworth-Heinemann.
- CHAUDHRY, M.H. (2022). Open-Channel Flow. 3ª edição. Berlin/Heidelberg: Springer.
- STURM, T. (2010). Open Channel Hydraulics. 2ª edição. New York: McGraw-Hill.